quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Kim Phúc, a garotinha da foto - Guerra do Vietnã

Reproduzo aqui a reportagem publicada no site da revista Veja em 11/10/2012. 
Recomendo para quem quiser trabalhar sobre a presença da mídia em zonas históricas de conflito, e principalmente sobre a sensação que uma figura histórica pode ter a respeito de seu registro.


'A dor física permanece, mas agora eu me sinto livre'

Kim Phúc, sobrevivente da Guerra do Vietnã retratada na famosa foto de Nick Ut, fala ao site de VEJA sobre suas lembranças de 1972 e de como tem conseguido superar os traumas da infância



Em 8 de julho de 1972, no vilarejo de Trang Bang, no Vietnã do Sul, uma imagem em que crianças correm e choram enquanto a fumaça dos explosivos é vista ao fundo seria eternizada pelo fotógrafo vietnamita Nick Ut. A foto comoveu o mundo e tornou-se símbolo da Guerra do Vietnã. A menina Phan Thi Kim Phúc somente se daria conta da importância daquela imagem muitos anos mais tarde. Em entrevista concedida por telefone ao site de VEJA, ela conta que, quando viu a foto pela primeira vez, se sentiu muito constrangida, principalmente por estar nua. “Não gostei nem um pouco daquilo, e me perguntava por que tinham tirado uma foto tão feia”, lembra. Com a repercussão da imagem, o governo comunista decidiu usar a figura de Kim para fazer propaganda do regime e ela foi forçada a abandonar os estudos. Hoje, ela lamenta não ter realizado o sonho de estudar medicina em Saigon, mas olha para a foto de uma forma diferente. “Hoje entendo que ela foi um presente poderoso para mim. Aceito que fui aquela garota e que agora posso usar minha experiência a favor da paz”.

Na foto, Kim tinha apenas nove anos. Parte do seu choro refletia sua dor após a queimadura por napalm (líquido inflamável à base de gasolina gelificada) em 55% de seu corpo. Ela está no Brasil nesta semana para participar do 8º Congresso Brasileiro de Queimaduras, em Florianópolis (SC), onde deve falar sobre o tratamento ao qual se submeteu e que incluiu 17 cirurgias. A vietnamita mora em Toronto desde 1992, com o marido e dois filhos, Thomas, de 18 anos, e Stephen, de 15. Em 1997, foi chamada para ser embaixadora da boa vontade das Nações Unidas e criou a Fundação Kim, que fornece suporte médico e psicológico como forma de superar as experiências traumáticas. A instituição tem projetos em escolas e hospitais em países como Uganda, Timor-Leste, Romênia, Tadjiquistão, Quênia e Afeganistão. Um livro sobre sua vida foi lançado em 1999, assim como um documentário posterior. Recentemente, ela conheceu o fotógrafo que eternizou sua imagem. Os dois se encontraram em New Jersey, nos Estados Unidos. “Ele se tornou parte da minha família, nos tornamos amigos muito próximos”. Leia a entrevista a seguir:


A senhora tinha apenas nove anos quando seu vilarejo foi bombardeado. Do que mais se lembra daquele dia? 

Estava em casa com minha família quando os soldados do Vietnã do Sul, que nos protegiam, vieram avisar à minha mãe que os militares do Norte estavam ocupando a nossa cidade. Foi então que soubemos que a guerra estava se aproximando. Minha mãe decidiu levar toda a família para um templo próximo à saída do vilarejo, porque achamos que esse seria um lugar seguro. Mas, em tempos de guerra, nenhum lugar é seguro. Lembro-me de que as crianças não tinham permissão para brincar longe de um abrigo antibombas. Estávamos escondidos ali com outros moradores e soldados havia três dias, até que, depois do almoço, ouvimos o barulho de várias explosões do lado de fora. E os adultos encontraram marcas feitas com giz nas paredes do templo, o que significava que o local seria bombardeado em breve. Então, os soldados do Sul avisaram que todos nós teríamos que correr para não sermos mortos. As crianças foram na frente, e os adultos vieram atrás. De repente, vi um avião chegando muito perto de nós. Não sabia o que fazer, não conseguia correr. Fiquei parada ali. Quando virei para trás, quatro bombas caíram. Podia ouvir o som e ver o fogo por todos os lados. Minha roupa inteira se queimou. Então, vi fogo em meu braço esquerdo. Tentei apagá-lo com a mão direita, mas acabei queimando-a também. Eu estava tão assustada. Graças a Deus que pelo menos meus pés não se queimaram. Foi um milagre! Eu teria ficado ali, sem conseguir me deslocar. O pior poderia ter acontecido. Continuei correndo, até que eu me sentia tão cansada, que não conseguia mais correr. Então, parei e gritei: “Muito quente, muito quente!”. Um dos soldados tentou me ajudar e jogou água fria em mim. Depois disso, perdi a consciência. E não me lembro de mais nada.

Quais pensamentos passavam pela sua cabeça enquanto corria e chorava no momento retratado pela foto de Nick Ut?

Logo depois que me queimei, só conseguia pensar em como eu ficaria feia e deixaria de ser normal, que as pessoas me veriam de uma forma diferente. Ainda me lembro disso. Mas, depois, parei de pensar em qualquer coisa, porque estava aterrorizada demais para isso. Só continuava correndo e correndo. 

Como a senhora reagiu? 

Os primeiros 20 anos foram os mais difíceis. Achei que nunca teria um namorado, me casaria ou teria filhos. Nunca imaginei ter uma vida normal. Minha autoestima era muito baixa, por causa das queimaduras, das cicatrizes e da dor. Não fui queimada com água quente, mas com napalm, que queima por baixo da pele, profundamente. Fiquei no hospital por 14 meses, incluindo as 17 cirurgias que fiz e o período de reabilitação. Isso para uma garota de nove anos... Até hoje ainda sinto dor. Dependendo do clima do lugar onde estou, ela é mais forte. Hoje, meus filhos quando se machucam se lembram de mim: “Nada se compara a sua dor, mamãe”. 

Quais traumas permaneceram dessa época? 

Até hoje tenho muitos pesadelos durante a noite. Na maior parte das vezes vejo incêndios e armas que me perseguem. Eu corro sem parar até que acordo cansada e assustada. Tentei evitar por muito tempo ver filmes que tinham armas, guerra e violência. Tudo isso me levava de volta para o momento em que me queimei. Mesmo quando vejo homens fardados, a imagem de um verdadeiro conflito armado vem à minha cabeça. É horrível. 

Como se sentiu quando soube que uma foto sua se tornou famosa no mundo todo?

Pensei: “Meu Deus, minha foto ficou famosa, mas eu não sou famosa!” Já tinha visto a imagem antes, mas só dez anos depois, aos 19, descobri que ela tinha rodado o mundo. No Vietnã, a guerra acabou e ninguém mais soube dessa foto. Ela saiu no jornal local, mas não teve tanto impacto. Me lembro de quando voltei do tratamento de queimaduras, e meu pai me mostrou a foto. Ele tinha recortado do jornal e guardado para me mostrar. Fiquei completamente chocada. Achei muito constrangedor estar nua, e todos podiam ver. Não gostei nem um pouco daquilo, e me perguntava por que tinham tirado uma foto feia. Fiquei me sentindo mal por causa do meu corpo, mesmo. Acho que é normal, todo mundo quer sair bonito numa foto. 

A fama teve um impacto positivo ou negativo na sua vida? 

No começo, não liguei muito. Fiquei levemente feliz, pois as pessoas começaram a prestar atenção em mim. Mas, depois, isso foi longe demais. Vários jornalistas me procuravam, minha história virou notícia. E minha vida ficou uma bagunça. Eu tinha um grande sonho: virar médica. E o governo me proibiu de estudar medicina em Saigon, porque eu era muito importante, precisava dar entrevistas. E isso foi muito negativo para mim. Demorou muito tempo, quase 20 anos, para eu entender a importância daquela imagem. Hoje, eu entendo que ela foi um presente poderoso para mim. Aceito que fui aquela garota da foto e que hoje posso usar essa experiência a favor da paz. 

Quando sua vida tomou um rumo diferente? 

Desde que me mudei para o Canadá, em 1992, tudo começou a mudar. Antes, achava minha vida horrível. Além das queimaduras, estava emocionalmente perturbada. Sentia ódio, raiva, amargura, e isso era muito duro para mim. Em 1982, me tornei cristã no Vietnã e aprendi a lidar melhor com esses sentimentos. Aprendi a perdoar, amar meus inimigos, como a Bíblia diz. Quanto mais rezo pelos meus inimigos, melhor eu me sinto. Eu ameaçava essas pessoas à morte. Queria que sofressem também. Hoje meu coração está curado. A dor física permanece, mas agora eu me sinto livre. Agora tenho liberdade, aprendi a perdoar, a seguir em frente, a usar minha experiência para ajudar outros que passam pela mesma dor, física ou emocional. Estou muito feliz por achar um propósito para a minha vida. Hoje posso ver o milagre que foi ser queimada e ainda estar viva. Estou muito agradecida, mas demorou um tempo para que eu aprendesse isso. 

O que mudou no Vietnã depois da guerra? 

Não havia mais perigo, explosões, armas. Mas havia tanto a ser feito pelas pessoas... Muitas casas foram destruídas completamente durante a guerra. Não tínhamos onde morar ou o que comer, também faltava dinheiro. Nosso objetivo era a sobrevivência, dia após dia. Nos últimos anos, a realidade no Vietnã tem se tornado cada vez melhor. O sistema ainda é comunista, mas a economia está crescendo. 

Qual mensagem pretende passar aos brasileiros? 

Queria dividir minha experiência de vida e passar a mensagem de que todos podem aprender a viver com amor, esperança e perdão. Se todos pudessem aprender isso, não precisaríamos de guerra. Se aquela garotinha pode fazer isso, outras pessoas também podem.

História


A presença de unidades de combate americanas no Vietnã só foi oficializada em 1965. Muitos historiadores, porém, consideram que a guerra começou em 1961, ano em que o presidente americano John Kennedy enviou uma carta ao seu colega do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, comprometendo-se a impedir que o país fosse unificado sob o comando do regime comunista do norte da ex-colônia francesa

Considerado o primeiro grande conflito entre tropas regulares e guerrilheiros, a Guerra do Vietnã transformou-se em um atoleiro no qual não se encontraria uma vitória, mas do qual os Estados Unidos só saíram em 1975, depois que a opinião pública americana, chocada com imagens como a da menina queimada por uma bomba de napalm, se voltou contra a guerra.



E para quem não lembra de que foto esta matéria está falando: